Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos Jornalista (MT/SC 4155)
Primeiramente, Álvaro Vieira Pinto avultou entre filósofos brasileiros do século XX, cuja obra permanece fundamental para a compreensão crítica da realidade nacional. Nascido no Rio de Janeiro em 1909, formou-se inicialmente em medicina, mas sua trajetória intelectual logo o conduziu para os campos da filosofia, da epistemologia e da educação. Seu pensamento é marcado por um profundo compromisso com a transformação social do Brasil, com forte ênfase na necessidade de desenvolver uma consciência crítica capaz de superar a dependência cultural, científica e tecnológica que marcou a história do país.
Vieira Pinto atuou de maneira destacada como professor e pesquisador, tendo alcançado a cátedra de filosofia na Universidade do Brasil, atual UFRJ, e, mais tarde, dirigiu o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), um centro de pensamento estratégico que reunia intelectuais comprometidos com o desenvolvimento nacional. Sua produção intelectual é vasta, complexa e engajada, sempre orientada pela convicção de que o pensamento filosófico deveria estar a serviço da emancipação do ser humano e da construção de uma sociedade mais justa e autônoma.
Destarte, a filosofia de Vieira Pinto não se limita à reprodução de teorias importadas. Embora tenha dialogado intensamente com correntes europeias, como o idealismo alemão, o marxismo e o existencialismo, seu principal esforço foi o de criar um pensamento genuinamente brasileiro, comprometido com as condições históricas concretas do país. Para ele, a tarefa do filósofo não era simplesmente explicar a realidade, mas contribuir para sua transformação. Nesse sentido, desenvolveu uma crítica profunda à alienação cultural e científica que, segundo ele, impedia o Brasil de afirmar sua identidade e alcançar sua autonomia. Um de seus conceitos mais significativos é o de “consciência ingênua”, termo utilizado para descrever a atitude acrítica de muitos setores da sociedade brasileira diante da realidade.
Essa consciência, marcada por uma aceitação passiva das condições impostas pela dependência externa, reproduz visões de mundo alheias à experiência nacional e contribui para o imobilismo social. Em contraposição, Vieira Pinto propôs a formação da “consciência crítica”, uma atitude reflexiva e comprometida com a transformação social, capaz de interpretar a realidade a partir de suas raízes históricas e culturais. Essa consciência crítica deveria ser o motor do desenvolvimento nacional, pois só por meio dela seria possível romper com o complexo de inferioridade que impedia o país de se afirmar como protagonista no cenário internacional.
Outro aspecto central do pensamento de Vieira Pinto é sua visão sobre a ciência e a técnica. Ao contrário de uma perspectiva tecnocrática, que vê a tecnologia como neutra e universal, ele propôs uma compreensão humanista da ciência, considerando-a como uma construção social enraizada em contextos históricos específicos. Em suas obras, especialmente em “Ciência e Existência” e nos “Ensaios sobre Tecnologia”, defendeu a ideia de que o conhecimento científico deve estar a serviço da humanidade e do desenvolvimento dos povos. Para ele, importar tecnologia sem domínio crítico do conhecimento significava perpetuar a dependência. O Brasil, segundo Vieira Pinto, precisava criar sua própria base científica e tecnológica, desenvolvendo um pensamento autônomo e voltado para as necessidades reais da população. Essa perspectiva foi revolucionária para sua época e continua profundamente atual. A crítica que ele fazia à importação acrítica de modelos estrangeiros se aplica tanto à tecnologia quanto à educação, à política e à cultura. Ele via a técnica como uma expressão da inteligência humana, capaz de transformar o mundo, mas que, se dissociada de um projeto ético e social, pode se tornar um instrumento de dominação. Portanto, sua defesa do desenvolvimento científico nacional vinha acompanhada de uma exigência moral: a ciência deveria contribuir para o bem comum, e não para a reprodução das desigualdades e da exploração.
Ademais, Vieira Pinto foi também um importante formulador de uma concepção de nacionalismo ético e progressista. Para ele, o verdadeiro nacionalismo não era xenófobo ou excludente, mas sim uma afirmação da dignidade e da capacidade dos povos de definirem seus próprios destinos. Em um contexto de dominação econômica e cultural, como o vivido pelo Brasil ao longo do século XX, a defesa da soberania nacional era uma exigência de justiça social. Por isso, ele criticava severamente a postura de setores da elite brasileira que adotavam modelos externos sem consideração pelas realidades locais. A superação do subdesenvolvimento, em sua visão, dependia da capacidade do povo brasileiro de se reconhecer como sujeito da própria história, rompendo com o colonialismo mental que ainda persistia. A valorização da cultura nacional, da ciência feita no país e da experiência vivida pelo povo eram, para ele, condições indispensáveis para a construção de um projeto nacional autêntico e emancipador.
Durante sua “performance” no ISEB, Vieira Pinto integrou um grupo de intelectuais que buscava pensar o Brasil a partir de suas próprias condições. O ISEB foi extinto após o golpe militar de 1964, e o próprio Vieira Pinto foi afastado compulsoriamente de suas funções, sendo considerado subversivo pelo regime. A partir daí, entrou num período de reclusão intelectual, durante o qual continuou escrevendo, embora com menor visibilidade. Suas obras, durante décadas, ficaram restritas a círculos acadêmicos específicos, e seu nome foi sendo lentamente apagado do debate público. No entanto, sua influência continuou a se manifestar em pensadores que beberam de sua fonte, como Paulo Freire, que o considerava uma das maiores inspirações para o desenvolvimento da pedagogia crítica. Freire, aliás, tomou emprestado o conceito de “consciência ingênua” e o desenvolveu no contexto da educação popular, reforçando a ideia de que a transformação social começa com o despertar da consciência crítica do oprimido. O diálogo entre Vieira Pinto e Freire é um dos pontos altos do pensamento social latino-americano, unindo filosofia, educação e política em uma proposta radical de libertação.
Por conseguinte, nas últimas décadas, Álvaro Vieira Pinto tem sido redescoberto por novas gerações de pesquisadores, especialmente nos campos da filosofia, da sociologia, da educação e dos estudos sobre ciência e tecnologia. Em tempos de globalização acelerada e crescente dependência tecnológica, sua crítica à alienação e à submissão intelectual aos centros hegemônicos adquire renovada atualidade. O debate sobre soberania digital, por exemplo, pode se beneficiar de sua reflexão sobre a técnica como expressão da autonomia humana.
Do mesmo modo, a necessidade de pensar o desenvolvimento a partir das condições locais, respeitando a diversidade cultural e as formas de saber dos povos periféricos, ecoa diretamente as propostas que ele defendeu décadas atrás. Estudar a obra de Vieira Pinto, portanto, não é apenas um exercício acadêmico: é um ato político, uma forma de resistência diante de uma ordem mundial que insiste em manter os países do Sul global em posição de subordinação. Sua proposta de um projeto nacional comprometido com o bem comum, com a justiça social e com a soberania popular permanece como um farol para todos aqueles que acreditam na possibilidade de construir um país mais justo e autônomo.
Em epítome, Álvaro Vieira Pinto foi um pensador de rara lucidez e coragem intelectual. Sua obra se destaca não apenas pela erudição e pela densidade filosófica, mas sobretudo por seu compromisso ético e político com a emancipação humana. Ele foi capaz de articular teoria e prática, pensamento e ação, filosofia e realidade concreta, sempre orientado pelo desejo de contribuir para a construção de uma sociedade mais livre, crítica e soberana. Em um país marcado por desigualdades históricas, por traços persistentes de colonialismo e por crises recorrentes de identidade, a leitura de Vieira Pinto nos convida a um exercício de reflexão profunda sobre quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. Seu legado permanece vivo e necessário, não apenas como memória intelectual, mas como fonte de inspiração para os desafios do presente e do futuro.
Por final, reconhecê-lo como um dos grandes pensadores brasileiros é não apenas um ato de justiça histórica, mas também um passo fundamental na afirmação de nossa capacidade de pensar por nós mesmos, com autonomia, com profundidade e com coragem.
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