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O TEMPO jornal de fato

Voltando no Tempo - Nas Trilhas da Música Caipira

“é mió sê caipira anarfabeto que sertanejo universitário!” Antonio Carlos “Bolinha” Pereira

Muitas vezes contraditória e acidentada como a viagem feita em lombo de burro pelos tropeiros, quando a espalhavam pelas profundezas deste país de vocação agrícola, a música caipira sobrevive no imaginário popular. Verdadeiros clássicos do cancioneiro brasileiro são presença garantida quando amigos se juntam ao redor de um violão ou uma sanfona. Originária principalmente do interior paulista e mineiro, ela se espalhou pelo Brasil através das ondas do rádio, contando estórias de boiadeiros, violeiros, gente da roça perdida na cidade grande, em ritmos como catira, fandango, congada, guarânia, bolero e outros.

♪♪ ♪♪ Vim pra cidade esquecer a saudade, mas a saudade veio junto pra cidade

Surpreende pensar que, embora esteja ligada ao mundo rural e seja vista como símbolo de atraso, a trilha sonora da roça foi impulsionada por dois participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, o escritor Mário de Andrade e o poeta Guilherme de Almeida que admiravam o pioneiro João Pacífico, parceiro de Raul Torres nos clássicos “Cabocla Tereza” e “Pingo d’água”. O maestro Rogério Duprat definiu: “O que caracteriza a música caipira é principalmente o som da viola e o estilo do canto, que talvez seja o fator mais importante, pois os cantadores geralmente se utilizam das terças, isto é, nas duplas um canta em dó e o outro em mi”.

♪♪ ♪♪ “Que loirinha tão bonita que gaúcha de abafar. Eu falei pro meu irmão na mesma hora, se ela não topar comigo eu ‘garro a gaita e jogo fora”

Vários modismos surgiram, mas a moda de viola permanece. Quando eu era criança tínhamos em casa um rádio Pionner, daqueles com olho mágico, nele ouvi os irmãos João e José Salvador Perez, conhecidos como Tonico e Tinoco, cantarem “Cana Verde”, a minha favorita do gênero até hoje. Quando, na década de 1970, a gravadora sugeriu a inclusão de guitarras elétricas para modernizar seu som e incrementar as vendas, a dupla anunciou: “despois nóis vorta”.

♪♪ ♪♪ “Chora viola e sanfona, chora triste o violão. O que é madeira chora, que dirá meu coração”

         Assim como eles, tivemos muitos e bons violeiros e cantadores. Dos pagos do Sul com Teixeirinha e outros que eu ouvia no “Grande Rodeio Coringa” apresentado na rádio Farroupilha por Darcy Fagundes e Luiz Menezes, ao sertão do agreste com Luiz Gonzaga e seus seguidores e muitos foram na trilha do precursor Cornélio Pires. Inezita Barroso e Rolando Boldrin sempre levaram a seus programas de televisão nomes ignorados pela mídia: Cascatinha e Inhana, Alvarenga e Ranchinho, Pena Branca e Xavantinho, Jararaca e Ratinho, Roberto Corrêa, Mário Zan, Renato Andrade e Helena Meirelles uma violeira, cantora e compositora que nasceu no interior do Mato Grosso do Sul,  mundialmente reconhecida por seu talento como tocadora de viola caipira, que foi escolhida pela revista americana Guitar Player para figurar entre os cem melhores do mundo, ao lado de gente como B. B. King, Jimi Hendrix, Eric Clapton e outros de quem ela nunca ouvira falar.

♪♪ ♪♪ “Coração quem manda quando a gente ama, se estou junto dela sem dar um beijinho coração reclama

“Música só tem dois tipos: a feia e a bonita”, dizia Tião Carreiro. Conhecido como Rei do Pagode, ele tanto mexeu e remexeu nas cordas da viola que descobriu uma outra levada. Como gostava de samba inventou um jeito diferente de tocar: gravou primeiro uns acordes de violão e depois os mesmos acordes na viola, de trás para frente, criando assim o pagode sertanejo, um dos ritmos mais tradicionais da cultura do sul do Brasil.

♪♪ ♪♪ Quando chega a madrugada lá no mato a passarada
principia um barulhão

Almir Sater e Renato Teixeira revigoraram o gênero com belas poesias ponteadas pelo som da viola e do violão. Depois de fazer sucesso nos tempos da Jovem Guarda,Sérgio Reis deu novo impulso ao movimento nos anos 70 e orientado por Tony Campello revisitou o repertório de Teddy Vieira, ao regravar “O menino da porteira”, que virou até filme. O cinema consagrara Mazzaropi, caipira desde o sotaque ao modo de andar. E como explicar essa perenidade? “Pra fazê esse tipo de música a gente tem que ficá à toa, deixá acontecê, picando um cigarrinho de palha e bebendo um gole de pinga, da boa”, ensina a filosofia do caipira.

♪♪ ♪♪ “Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”

Num tempo em que as vitrolas eram raras e os discos muito caros, o rádio desempenhou papel primordial na divulgação do gênero, geralmente em horários alternativos, madrugada ou fim da noite. Em seus áureos tempos as emissoras locais contavam com amplo auditório, onde os talentos regionais se apresentavam “ao vivo”. Recordo os cantores regionais, a ZYC-7 Rádio Catarinense dispunha do “Trio Moreno”, que interpretava versões próprias dos sucessos da época, e na ZYT-31 Rádio Herval d’Oeste brilhava o "Trio da Serra", composto por Pereirinha, Nardinho e Gauchinho, que foram a São Paulo de carona com o sr. Albino Karloh e gravaram na Philips quatro músicas em compacto duplo. A mais lembrada é “Morena Prendedeira”, composta por Pedro Pereira e Leonardo Machado, faixa do disco n° 440.670, lançado em 1964.

♪♪ ♪♪ “Morena me prendeu na cadeia, ai na cadeia eu não posso morar/ ai na cadeia só quem mora é preso e eu não sou preso, venha me soltar”

Talvez o tempo leve os violeiros, mas nunca levará o som da viola: ele ecoa nas memórias, nos terreiros, nas cozinhas e nos rádios de pilha que ainda resistem por aí. Que as novas gerações descubram nessas modas a poesia da terra, a simplicidade do povo e a sabedoria de quem vive com o coração aberto.

♪♪ ♪♪ Duvido alguém que não chore pela dor de uma saudade, quero ver quem que não chora quando ama de verdade

O povo canta para se alegrar, brincar, trabalhar, rezar e até expressar tristeza. Ao celebrarmos nossas lendas, canções, danças e costumes, não apenas preservamos o passado, mas também inspiramos o futuro, fortalecendo a identidade e a união do nosso povo. Quanto a nós, resta agradecer essa tecnologia que permite ouvirmos aquelas gravações quando e quantas vezes quisermos, acreditando que essa árvore frondosa de raízes profundas volte a produzir música de qualidade.

♪♪ ♪♪ Moreninha linda do meu bem querer é triste a saudade longe de você”

A música caipira atravessou séculos e modismos, guardando na melodia o retrato de um Brasil profundo, verdadeiro. É mais que som: é história viva, memória cantada. Que nunca se perca esse elo entre o campo e a cidade, entre o ontem e o amanhã — porque, afinal, quem nasce ouvindo moda de viola carrega para sempre um pedacinho de terra no peito.

♪♪ ♪♪ “Fui na casa da morena, pedi água pra beber Não é sede, não é nada, moreninha, vim aqui para te ver”

E assim, trajando camisa xadrez e chapéu de palha nas trilhas da roça, a viola segue ponteando o coração do Brasil. Mesmo que as modas mudem e o tempo corra ligeiro, há sempre um cantador disposto a recordar o passado e renovar o presente com o mesmo sentimento simples e verdadeiro de quem canta por amor à vida. Porque, no fundo, a alma caipira não envelhece — apenas muda o tom, sem perder o compasso.

♪♪ ♪♪ “Não há, ó gente, ó não, luar como esse do sertão. A gente pega na viola que ponteia e a canção é a lua cheia a nos nascer do coração”

Obs.: são citadas letras das músicas Vim pra cidade (Julio Nagib e Sydney Moraes), Loira casada (Adelar Bertussi e Honeyde Bertussi), Cana verde (Tonico e Tinoco), Beijinho doce ("Nhô Pai" ou João Alves dos Santos), Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira), Tocando em frente (Almir Sater e Renato Teixeira), Morena Prendedeira (Pedro Pereira e Leonardo A. Machado), Rio de Lágrimas (Lourival dos Santos, Tião Carreiro e Piraci), Moreninha linda (Maninho, Priminho e Tonico), As Mocinhas da Cidade (Nhá Gabriela e Nhô Belarmino), Luar do sertão (Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco)


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